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Crônica: As Línguas da Ribeira

Confira a crônica escrita sob o olhar de um admirador sobre um dos lugares mais românticos do Porto.

Crônica: As Línguas da Ribeira

Confira a crônica escrita sob o olhar de um admirador sobre um dos lugares mais românticos do Porto.

Sou velho, nem sei mais de quantos anos. Não há nada em mim que chame atenção, nem há algo em minha aparência que é simpático e amigável. Todos passam por mim e sequer notam minha existência. Sou como uma folha seca num jardim de primavera, sou como uma gota de água lançada ao Rio Douro. Mas prefiro que assim seja. Dessa forma, camuflo-me de todas as maneiras – como um fotógrafo que escolhe a melhor ângulo da imagem, como um escritor que procura o lado mais impecável de uma história. 
Sento-me em um banquinho na Ribeira todos os dias. Desde que me mudei do Algarve ao Porto me maravilho com a paisagem. Contemplo a história viva em cada beco, em cada ponto, em cada esquina. Vislumbro os olhos dos turistas marejados e admirados a cada passo. Observo o balançar dos cabelos das donzelas pelo vento e a agitação das emoções de cada um. Ouço a sinfonia perfeita das folhas de outono raspando no asfalto, para uns sinal de esperança, para outros sinal de renovação. É neste cenário que procuro minhas histórias.
– Deixa-me.
– Não te deixo.
– Tens razão. Deixaste-me há muito.
Vejo a alegria da menina que serve pastéis, ou até mesmo a francesinha, num restaurante qualquer. Para qualquer turista:
– Moça!
– Moça?!
– Desculpe. Rapariga.
– O que queres?
– Um pastel.
– De nata?
– De Belém. 
– O mesmo. Se calhar não tem.
Ou mesmo a criança que passeia pelos sítios, encantada com cada construção gigante e magnífica. 
– Mãe, compra-me um gelado?
– Pronto.
– Não é pronto, é prontos!
Durante todo o dia, os mundos mudam. As histórias são como rios que correm uma só vez. Não há nada de idêntico em nenhuma delas. Todas, infinitas, renovam-se a cada segundo. Podem ser parecidos, mas os universos que existem em cada pessoa se alteram infinitamente.
Todos passam por mim e ignoram-me. Buscam algo mais interessante a fazer do que olhar um velho ranzinza os encarando. Eu os vejo, sequer sorrio, mas os analiso por completo. Estendo meus olhos até o Rio Douro e observo um casal apaixonado. A rapariga, de costas para mim, contempla o outro lado do rio. Lança os olhos à Santo Ovídio ou a Gaia. Vejo que ela e seu companheiro flutuam num barquinho como uma pena sob o rio. 
Ela, portuguesa. Cogito por seu sotaque típico e semelhante ao meu. Ele, brasileiro, do nordeste. Tento imaginar o que ambos exercem nas suas vidas. Estudantes, pela idade. Ela parece ter vocação para advogada, ele visivelmente prefere cálculos. Sinto, de longe, os corações jovens pulsarem. Fervorosos e agraciados. As paixões novas florescem como uma roseira em terra seca. 
Tento compreender o fio do destino que se desenrola entre os dois. Espero ver olhos vívidos e resplandecentes, pupilas dilatadas e respirações ofegantes. Pelo menos algum sinal daquele amor que senti quando era mais jovem. Qualquer coisa: uma risada, uma piada, uma olhadela, algo que fique bem retratado na mais bela história. Que faça o segundo ficar eternizado e aquele casal que passa rapidamente a minha frente pelo menos me renda algum bom relato.
Imagino, por alguns segundos, como seria aquela paixão de dupla nacionalidade. Eles, os dois, no autocarro ou no ônibus. No metrô ou no metro. Que seja, que fosse. Ela com o s mais fechado, ele com as vogais mais abertas. Nenhum sotaque se encaixaria tão bem como o deles. Encaro-os e vejo emaranharem-se num abraço lusitano e brasileiro, num gesto apaixonado de um perfeito roteiro.
– Amo-te.
– Te amo.

Fascinado ao vê-los, entristeço-me. Vejo o barco parar na margem e os dois afastam-se. No rosto de ambos, os raios de sol começam a refletir cada lágrima que antes eu não via. O cabelo da menina grudado no rosto, o fim de um abraço e o início do desenlace de corpos. A separação, a dura e dolorosa separação. Penso que um deles tem de partir. Sim, infelizmente. Algum deles tem de ir.
O rapaz visivelmente sôfrego é o primeiro a sair do barquinho. Reluta. Então, sem forças, olha para trás. Mas o vejo ir embora. Cada vez mais longe, o fio que une os dois parece rasgar-se. Tento entender o que se passa. Não, menina! Não chore! Ele fica mais distante, mais distante, mais distante. Ele some.
Que seja um jovem amor, que seja. Amor é amor. Um amor que se vai é como ferida que se abre e nunca cicatriza. 
Imagino o que acontecera. Tento entender ao menos o que levara àquela infeliz separação. Ela senta e chora. E o barquinho parte novamente. O preço de um amor distante é caro, assim como o de uma passagem de um avião. Ambos somem depois daqueles breves e tristes segundos, assim as línguas desenrolam-se. 
Tristemente, entendo. Amores duram segundos ou a eternidade. Duram do nunca até o para sempre. Amores de outono são como folhas que caem ao chão e secam. Doem, machucam, maltratam e finalmente secam.
Fecho minha agenda e caio em tristeza. Preparo-me para o dia seguinte. Consolo-me que foi só mais uma história. A história de qualquer um, mais uma das quais me contaram as muitas línguas da Ribeira.
 
 
 
 
 
Créditos do desenho: Hellen Christine Caliari
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